Como se cola um poema de Alejandra Bosch e um filme de Wim Wenders

Mabel
9 min readMay 30, 2024

Hoy no voy a morir
porque necesito ocuparme
de secar los vidrios
que mojados, por el calor de la casa
sudan.
Voy a terminar de tejer el sombrero
que ayer comencé , mientras
lloraba.
Hay un nido vacío en techo de la casa
unos palos clavados en la tierra
que pueden ser un garage
si nos ocupamos y clavamos
en esas tablas, olvidadas
atrás.
Al nido, lo abandonó un pájaro
después de una tormenta
cuando la calma volvió
creí que el pájaro
volvería a confiar en su construcción
no.
Hoy intentaré no morir
eso le prometí a un amigo, por whatsapp
voy a buscar viejas lecturas
y disfrutar de su conocida belleza
y si me animo, escribiré un poema
uno que continúe con mi labor
voy a barrer mi casa
talvez lave mi ropa
y saldré a caminar
para cansarme.

(Alejandra Bosch, 2018) [1]

Talvez pela leitura demasiada, esse poema comece a aparecer pra mim em todo lugar. Afinal, ele me acompanhou ao longo de três anos da graduação e, ainda assim, a cada vez que o leio vejo coisas novas. Essa familiaridade e estranheza simultâneas provocam uns efeitos curiosos, como o de colagem. Ouço o poema quando realizo uma das atividades nele elencadas — quando varro a casa, leio livros conhecidos, lavo a roupa, escrevo um poema. Ou quando vejo um ninho de passarinho. Ou quando vejo alguém tricotando. Ou quando acordo e o dia exige esforço, por isso penso “Hoy no voy a morir” como o mantra de uma prece. Parece que vou colando ele ao lado ou em cima das coisas.

Outro dia, aconteceu no cinema.

Eu fui assistir Dias perfeitos (Wim Wenders, 2023) pela segunda vez. E dessa vez, o filme pareceu outro. Isso acontece, né. Sinto que na primeira vez que assisto um filme fico desesperada tentando tirar algum fio de sentido dele, que ainda é um grande mistério. Na segunda, já aliviada dessa ansiedade inicial, posso relaxar e reparar nas pequenezas (que não diminuem em nada o mistério, mas que muitas vezes contam coisas mais interessantes). E não é que eu estou lá, olhando não mais pro centro, mas pros cantos da telona, e começo a ouvir: Hoy no voy a morir porque necesito ocuparme de secar los vidrios que mojados … ?

O poema. O que ele estava fazendo ali?

Numa aula de tradução, conversamos sobre a comparabilidade das coisas — falávamos no sentido de criar equivalências entre culturas e línguas. Lendo Ricoeur, conversamos sobre essas comparações serem coisas que inventamos e rolar quase como uma colagem puxada pela aleatoriedade ou intuição. É um pouco o movimento que faço aqui. Na hora que falamos sobre isso na sala, eu lembrei de outra coisa, que vinha pensando desde a última grande viagem que fiz, pra Argentina com meus amigos de faculdade:

Parece que a comparação também é uma forma de conhecer o mundo. Precisamos de uma referência de nosso repertório pra conhecer algo novo. Até que esse novo se torna mais conhecido e pode ser aí usado como referência também. Por exemplo, chegamos em Buenos Aires e chamávamos o metrô de rodoviária de São Paulo; uma ruazinha de Rua do Ouvidor; outra era a cara da Lapa; aquele muro pichado poderia estar no Catumbi. E muito provavelmente, por mais parecidas que as coisas possam ser, nossas comparações eram fracas em semelhança. Mas parecia que sempre buscávamos dentro de nós algo familiar para traduzir, entender, ler ou trazer pra perto esse desconhecido.

O mais interessante é que aquilo que é lido mais tarde se torna lente pra ler outra coisa. Em uma próxima viagem, algum lugar vai se parecer com as ruelas de San Telmo, com os bares de La Plata ou com a Plaza de Mayo. Lembro quando Manu chegou pra mim e falou que queria usar um poema como teoria pra ler outro poema, mudando pra sempre meu jeito de pensar pesquisa. A gente usa as ferramentas que tem, sabendo que não as temos por completo e que elas também não podem dar conta totalmente daquilo novo. Mas servem, pelo menos, seja até pelo contraste, como ponto de partida pra aprender a usar, então, outras ferramentas. De toda forma, uma aproximação, uma colagem faz acontecer alguma coisa.

E, nesse dia, a partir desse sussurro, começo então a colar filme e poema.

Quando posiciona um faxineiro de banheiros no cerne da película, Wim Wenders mostra pra todo o mundo um dos seus agentes invisíveis. Eu conhecia dois rumores sobre os banheiros japoneses: 1 — são muito high-tech, cheios de descargas automáticas, botões diversos, luzes e cores; e 2 — são extremamente limpos. E limpeza vem como esse dado pronto e intransitivo: sem ator responsável. No máximo, é atribuído mérito aos cidadãos japoneses usuários do banheiro e sua cultura regrada. Passa batida a existência de alguém que se ocupa disso, dos refis de papel higiênico, da transparência dos vidros, dos bons-ares de conforto, da clarividência dos espelhos. Dias perfeitos, em primeiro lugar, desmonta essa mágica — revela o truque, seu engenho e condições.

Quem ocupa o centro do poema de Alejandra Bosch, por sua vez, é alguém que lista o que vai fazer no dia de hoje ao invés de morrer. São ações realizadas dentro da casa: secar os vidros, tricotar um chapéu, lavar a roupa, varrer a casa, ler e escrever. A casa é desmontada no poema, é uma construção em processo, como o ninho do pássaro ou a costura do chapéu. As ações não estão finalizadas e precisam ser continuamente refeitas. Aqui também se revela o truque, o engenho, as condições em que são realizadas atividades sobre as quais pouco pensamos se não somos responsáveis por elas.

Para limpar banheiros, é necessário acordar cedo. Porque é necessário secar os vidros da casa, é necessário estar viva. Para limpar banheiros, é preciso o material apropriado, é preciso comer e usar as roupas certas, é preciso estar vivo. É possível tricotar enquanto se chora, mas para escrever um poema é preciso ânimo. Para limpar banheiros, precisa-se de ajuda.

O ponto I da cola que crio, então, é o cuidado — pessoas que cuidam.

No poema, esse cuidado é atravessado pela questão de gênero, trazendo a contradição entre os custos do trabalho doméstico presente na rotina das mulheres e a sua indispensabilidade para a manutenção da casa e da própria vida. É certo que para não morrer todos precisamos cuidar e ser cuidados. Mas, como bem mostra a filósofa Silvia Federici em seu ensaio “Um trabalho de amor” [2], ao associarmos esses cuidados a uma essência feminina, naturalizamos sua invisibilidade e distribuição desigual — o trabalho vai ficando cada vez mais escondido e mais pesado para as mulheres.

O trabalho que acompanhamos no filme, por mais que feito em espaços públicos, guarda estreita relação com o doméstico e, não por acaso, se corresponde em precariedade e falta de reconhecimento social. Diversas cenas mostram como em seu dia a dia, Hirayama é ignorado pela maioria das pessoas que usam os banheiros, com suas entradas e saídas bruscas.

O ponto II da cola talvez seja: olhar pra cima.

O movimento que mais me chamou atenção em Dias perfeitos foi esse. Quando Hirayama olha pra cima. É uma coisa que eu faço pouquíssimo, olho muito mais pra ver onde estou pisando. Ele olha e vê as árvores se abraçando lá em cima. Ou o céu por trás das árvores. Foi minha amiga Anna Violeta quem chamou a minha atenção para a cena pós-créditos do filme. Eu não me lembrava disso, mas ela me disse: aparece a palavra “Komorebi”, que corresponde a essa luz que aparece entre os ramos das árvores. A luz e a sombra que se disputam, brincam de pega-pega, como Hirayama mais tarde reproduz com o corpo. E essa mirada para o alto é tão importante pra ele, vemos pela aparição em todos os seus sonhos e pelas inúmeras tentativas de registro pelas fotos da câmera — sempre apontada para cima.

No meio do poema de Alejandra Bosch, há um desvio que também aponta pra essa direção. O poema não tem estrofes, o que faz essa aparente interrupção no que se estava dizendo ficar integrada ao resto. Direcionamos a câmera então para o telhado da casa, onde se encontra um ninho vazio.

Hay un nido vacío en techo de la casa
unos palos clavados en la tierra
que pueden ser un garage
si nos ocupamos y clavamos
en esas tablas, olvidadas
atrás.
Al nido, lo abandonó un pájaro
después de una tormenta
cuando la calma volvió
creí que el pájaro
volvería a confiar en su construcción
no.

O ninho aqui é uma construção na qual poderíamos interferir para finalizar e transformar em uma garagem. Tem uma mistura do ninho com a casa sobre onde ele está situado que nunca deixou de me confundir e interessar. O inacabamento parece unir não apenas ninho e casa, mas também se liga ao tricô do chapéu, dos primeiros versos, que ainda não foi finalizado. A presença da costura no poema também ajuda a pensar os trabalhos invisíveis em jogo. Por um lado, a costura é por si mesma mais um exemplo deles, e por outro, é um paradigma para pensar que estruturas são sustentadas por um avesso escondido, como propõe Tamara Kamenszain em seu ensaio “Bordado e costura do texto” [3]. Por trás do tecido existem tramas e fios que revelam seu processo; por trás de uma casa ou de banheiros limpíssimos, existe trabalho, existe alguém.

Outro ponto é que, quando revela que o ninho tinha um morador pássaro, vemos que o olhar de quem fala está direcionado para cima há tempos: ela espera que o pássaro volte e ele não volta. A decepção ganha força com o monossilábico “no” isolado no verso.

Essa vida desacompanhada se mostra comum em ambas as obras. Em “Hoy no voy a morir”, a sombra de um amigo com quem se comunica por whatsapp e a presença fantasma do passarinho podem ser coladas respectivamente ao parceiro de jogo da velha e à curta visita da sobrinha no filme. São também vidas que, por mais que tenham seus projetos, não despendem sua energia para o acúmulo ou o que consideraríamos “grandes ambições” em um cenário tomado pelo capitalismo e pelo individualismo. Vidas que nos mostram outras formas de olhar para a vida.

O tempo é outro. Hirayama não tem pressa. A não ser pelo inconveniente dia em que seu parceiro de trabalho se demite, Hirayama leva os dias em uma velocidade baixa, com espaço para a contemplação, para as pausas. Para quem fala no poema, o tempo também está em suspenso. Isso porque a maior parte dos verbos que aparecem nele estão apontando para ações futuras. É como se o poema pudesse estar sendo enunciado ainda da cama, logo após acordar, por seu sujeito. E nem todas são ações certas, há uma certa ponderação quando se usa o “talvez”. A única finalidade, explicitada no poema, vem em seu verso final “para cansarme”, que pode tanto se referir à ação de sair, imediatamente anterior, quanto a tudo o que é elencado antes no poema. É para se cansar.

Parece importante ressaltar que essas formas de vida focalizadas por filme e poema não são romantizadas a ponto de as resumir a um plano bucólico ou ideal. Muito pelo contrário. De um lado temos no filme um protagonista que não está isento de conflitos, intervenções, rebuliços emocionais e eróticos. De outro, um poema que já começa sob a tensão primordial de uma escolha pela não-morte que precisa ser pronunciada, que precisa ser tentada. Nos dois, os respectivos trabalhos são reconhecidos com proporcionais indispensabilidade e condições de existência.

Por fim, não gostaria de deixar de fora dessa colagem mais duas colinhas que aparecem para mim meio desordenadas meio juntas, como pequenas bolas de cola líquida que faço com os dedos.

voy a buscar viejas lecturas
y disfrutar de su conocida belleza

Esses dois versos agora têm também uma imagem os acompanhando. Por mais que vá até a livraria sempre à procura de livros novos, que não tardam a receber um comentário crítico entusiasmado da livreira, me parece que a busca e o desfrutar de Hirayama estabelecem um parentesco com os da eu poética de Alejandra Bosch. E daí que fui perceber. Mais acima me referi ao poema como “Hoy no voy a morir”, seguindo uma tradição que recorre ao primeiro verso do poema para nomeá-lo quando esse não tem título. Não tem título esse poema. Eu encontrei ele há três anos num site que divulgava um evento literário que ia acontecer em escolas argentinas e do qual Alejandra ia fazer parte.

E nisso de embaralhar árvores contra a luz e ninhos de pássaro, banheiros e vidros, tricô e fotos, rega de plantas e lavagem de roupas, leituras e leituras, me peguei pensando aproveitando a aventura dessa colagem:

Como seria se esse poema se chamasse “Días perfectos”…

Notas:

[1] Esse poema foi escrito por Alejandra Bosch e publicado em julho de 2018 pelo site: https://poesiaenlaescuela.blogspot.com/2018/07/bienvenida-alejandra-pipi-bosch-al-x.html. A zine digital Felisberta publicou uma tradução que fiz dele, e de dois outros poemas da poeta, na edição de primavera de 2023, deixo o link: https://felisbertazine.wordpress.com/

[2] Federici, Silvia. “Um trabalho de amor” in. O Ponto Zero da Revolução. Editora Elefante. 2019.

[3] Kamenszain, Tamara. “Bordado e costura do texto” in. Fala, poesia!. Editora Azougue Editorial — Coleção Nomadismos — vol.5., 2015.

Outro texto que fala sobre o paradigma da costura para pensar em estrutura e trabalho é o “El tejido como conocimiento, el conocimiento como tejido” da profª Tania Pérez-Bustos, de 2016.

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